Sonntag, 19. Juni 2011

Velho rezingão


Saramago teve o azar da ousadia. Uma ousadia bem mais burlesca que as dos demais génios literários.
Descansem os mais pudicos. Quando falo de ousadia, estou muito longe de referir as considerações que Saramago fez sobre o fenómeno religioso, mormente o judaico-cristão. As vozes que condenam tais blasfémias são incultas ao ponto de ignorar que aquilo que Saramago evidenciou já havia sido manifestado há muito tempo. O facto de Saramago ser condenado, no áureo e próspero século XXI, pelas suas hereges interpretações de episódios e ensinamentos bíblicos, choca se analisarmos cruamente, mas está longe de espantar.
Também não falo da presumida falta de portugalidade de Saramago. Apenas em Portugal o sentimento patriótico, herança inegável do nacionalismo colonial, se consegue sobrepor à grandeza literária. Quem leu Saramago sabe que este amou Portugal com desmedida gratidão. Quem absorveu Saramago sabe reconhecer que, navegando no mar de sarcasmo embriagante que são os seus livros, os grandes sobressaltos surgem exactamente nos momentos de reflexão, consideração, descrição, condenação ou exaltação do povo português. É a falar de Portugal, ou, mais sorrateiramente, do povo lusitano, que a escrita de Saramago mais atinge uma arrebatante perfeição expositiva. Bem vistas as coisas, Saramago – o escritor, bem entendido – só poderia ser português. A oralidade da sua escrita só poderia ter sido herdada da expressividade discursiva de um português. Um português fala sem parar; Saramago escreve sem parar. Parece-me indissociável.
Quando vos falo de ousadia, falo-vos de uma em particular que, pela raridade, merece que seja lembrada. A ousadia de Saramago foi nunca se ter refugiado na grandeza dos seus livros.
Passo a explicar: Saramago tem uma eloquência prosaica sem par na recente literatura nacional. Considerando a irreverência temática e gramatical, única característica captada pelos mais distraídos, à qual acrescentamos o sempre dúbio prémio da academia sueca, é natural a mediatização da sua figura. Aqui assenta o dilema: ou o escritor se esconde da esfera mediática, limitando a sua imagem pública àquilo que o seu engenho artístico concebe; ou, por outro lado, encara o mediatismo como um processo bidireccional, em que as suas palavras – de Saramago pessoa, não escritor – poderão ter alguma repercussão no povo que as ouve.
Saramago optou pela segunda hipótese. E, ao fazê-lo, fez o que todos fazemos perante outros seres humanos: construiu uma persona e deixou-se orientar por ela diante dos demais. A máscara que escolheu, essa, é questionável. O seu radicalismo trotskista é incomodativo, tremendamente irritante até, e o seu idealismo humano, ainda que louvável, é atípico num homem de tal sagacidade. Mas há sobretudo que destacar que Saramago optou por se expor com estes hiperbólicas assumpções, indo para além daquilo que foi a sua mensagem escrita, mais do que suficiente para o consagrar.
Dirão os leitores, sempre atentos, que não é rara a utilização da fama para a criação de uma máscara persuasiva. Discordo; este abuso é raro, sim. Entre os génios. E Saramago foi um. Mais um que se poderia ter abrigado no reconforto de uma obra reconhecidamente de excelência e de uma jornalista espanhola que tratava dele como de um marajá. Não o fez, ousou extrapolar a sua dificilmente superável palavra escrita com ideias faladas, e ter-se-á dado mal, pelo menos em Portugal, país que abandonou por não aceitar histórias de cobras falantes e insuspeitos milagres com a passividade desejada.
Era um homem terrivelmente exagerado. Provavelmente, nem sequer era boa companhia. Fez, porém, um estonteante malabarismo entre a fama e a eternidade. É importante separar, assim, valores distintos. Há valores humanos, políticos e espirituais. E há o valor literário. Se Saramago tivesse sido um ateu comunista, mas dos idiotas - e eles existem - poderia ser lembrado pela controvérsia. Mas a grande literatura tem a peculiar capacidade de sobreviver às mais apocalípticas histerias. E quando passar a tempestade que Saramago – humano - provocou com as suas acintosas apreciações, restarão sempre as lombadas beges de Saramago – escritor - para lembrar que aquele fervoroso e impertinente velho rezingão era, no fundo, um apagado sonhador.