Freitag, 24. Juni 2011

Mandamentos

Fico honestamente impressionado com a espiritualidade da raça humana. Impressiono-me facilmente com coisas estúpidas, facto que ainda me surpreende um pouco por saber que vivi rodeado de coisas estúpidas toda a minha existência e que as minhas mais vincadas mudanças de personalidade foram todas forçadas pela minha consciência se aperceber cada vez mais da quantidade de coisas estúpidas que existem. Reparando eu ou não, as coisas estúpidas tentaram alterar a minha percepção mais básica do mundo, contaminando-me a razão e querendo-me fazer acreditar que as coisas estúpidas são as mais importantes. E com estas considerações fatalistas, passo-vos a falar de espiritualidade, um tema vago, enigmático, já devidamente documentado e, ainda assim, surpreendentemente polémico. Mas o engenho que possuo com as palavras e a consciência que tenho das suas limitações não me permitem aventurar de ânimo leve por um tema de repercussões filosóficas, metafísicas, científicas e religiosas. Fá-lo-ei com tempo. Por agora, inclinemo-nos um pouco sobre a percepção que as pessoas obtêm perante este debate espiritual.
O que as pessoas captam, antes de mais, é que pode haver vida após a morte. Pode haver. Isto, desde logo, acalma-as profundamente e põe-nas relutantes a alterar a sua perspectiva para algo mais prático, factual e, consequentemente, mentalmente mais reconfortante. Os grandes movimentos espirituais, nos quais incluo as religiões, surgiram todos de dois fardos essenciais: a ignorância e o medo de morrer. O povo Maia, diz-se, adorava e venerava o Sol, pela sua grandiosidade, importância, mas essencialmente pelo desconhecimento da sua origem. Os avanços astronómicos permitiram chegar à conclusão que aquele era um corpo celeste, como tantos outros, como o calhau em que vivemos, e como tal tem de haver algo que nos transcenda a nós e ao Sol. Se além de atentarmos a esta falácia interpretativa, tivermos em conta que o instintivo medo de morrer, enterrado na mais básica das consciências, nos afecta persistentemente, é fácil compreender o fenómeno espiritual. Digo espiritual, não religioso. A existência de algo superior ao humano é premissa aceite dentro de todos os movimentos espirituais, mas surge de formas diferentes. Para uns é um velho numa nuvem que promete felicidade eterna a quem passe infeliz pela terra, mas se porte bem; outros ressuscitarão num corpo de outro ser; outros acreditam apenas na capacidade meditativa que permita a elevação da mente um degrau acima dos demais, de forma a observar os conceitos de morte e eternidade com maior amplitude.
É importante registar que eu, como todos, também tenho um medo medonho da morte. Mas a vida não me assusta particularmente. A única razão pela qual eu tenho medo da morte é porque tenho cem por cento de certeza que significará o fim. Daí que os mais sagazes homens que já partilharam connosco as suas ideias tenham sido homens com uma consciência de finitude enraizada, destruidora, cancerígena. É preciso haver morte para haver bons pensadores e, nessa perspectiva, se o medo da morte significar consciência do fim, então há motivos para pensar que a morte, afinal, nos pode elevar o discernimento.
Mas não para uma larga maioria das pessoas. Na sociedade ocidental, há uma intolerância enorme à dor provocada por buracos espirituais, por dúvidas concretas de resposta inalcançável, pelo que há que tapar essa dor com histórias de moral, céus e infernos, vinhos e cobras, mares e maçãs, gafanhotos e cruzes. As pessoas aceitam estas histórias pela sua simplicidade, pela nobreza das suas palavras, pela importância dos afectos, pela perspectiva de vida eterna.
A religião anuncia o que o povo ambiciona: eternidade, bondade e ilusão, um conjunto irresistível que alimenta o ego e afoga perspectivas de verdadeira iluminação.
Contudo, a grande maioria das pessoas não tem nesta crença um verdadeiro alicerce de actuação moral. Têm, isso sim, a aparência. A distinção padronizada e simplificada do bom e do mau: roubar, beber e gozar é mau; ajudar, aconselhar e perdoar é bom. Aqui assenta a frágil e superficial perspectiva moral da sociedade moderna: uma mistura de valores religiosos e modernas circunstâncias, minada de frequentes desobediências e actuações de gosto duvidoso. É instável, mas acaba por ser confortável: não dá muito trabalho, é de certa forma indiferente o critério com que se interpreta este código moral, desde que a aparência lá esteja, e a vida pode continuar a correr com a sua desrespeitosa indiferença.
Limitar-nos à condição de seres cuja evolução permitiu ter uma perspectiva adulterada pela consciência daquilo que é o tempo, o espaço e nós próprios parece ser pouco ambicioso. Mas não convém esquecer um profundo egoísmo nisto tudo: a devoção à divindade nada mais é do que ambicionar ser uma. Ambicionar ser intemporal, desmedidamente sabedor e emocionalmente desapegado – precisamente as três propriedades que faltam ao ser humano para deixar de sofrer.

DIOGO HOFFBAUER MALHEIRO DIAS